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A inconstitucionalidade da interdependência comercial


J. Rubens Scharlack é sócio fundador de Scharlack Advogados e Scharlack PLLC.

Andreia A. Moraes Silva é sócia de Scharlack Advogados.


Artigo publicado no Valor Econômico


Motivada por um planejamento tributário antigo, em que o contribuinte desmembrava suas atividades entre duas empresas suas – uma industrial e uma comercial – e fazia a industrial vender o produto a um preço artificialmente baixo para a comercial, assim reduzindo parte de sua carga tributária, a Lei Federal 4.502/1964 majorou a base de cálculo do IPI sempre que presente a interdependência entre firmas. Normas estaduais depois incorporaram o mesmo conceito para aumentar a base do ICMS-ST.


A lei trouxe duas hipóteses gerais de interdependência: a societária (em que uma empresa participa do capital da outra ou uma mesma pessoa exerce poder de mando em ambas) e a comercial (em que uma vende à outra em volume acima de certos patamares, é a única adquirente de um ou mais produtos da outra ou lhe vende mediante contrato de comissão ou similar). Este artigo explora a inconstitucionalidade da interdependência comercial.


Se uma pessoa tem o poder de controlar o preço de transação entre dois agentes econômicos, estes são interdependentes e a lei tributária pode desconsiderar esse preço ou o trocar por algo que originalmente seria a base de cálculo do tributo. Se duas empresas se enquadram na interdependência societária, é provável que alguém, em uma delas, possa controlar os preços entre elas. A mesma conclusão não se alcança a partir das normas de interdependência comercial.


Várias empresas despossuem a estrutura física, o expertise técnico ou mesmo o apetite negocial para manufaturar seus próprios itens. Muitas transnacionais trazem para o Brasil operações estritamente comerciais. Selecionam seus geralmente poucos fornecedores locais a partir da capacidade de produção, da qualidade técnica e da atratividade do preço de cada um. Normalmente desenvolvem a fórmula e demais características proprietárias de seus produtos em conjunto com esses fornecedores, que, de um lado, asseguram a venda de volumes mínimos de sua produção e, de outro, comprometem-se a não comerciar bens similares a terceiros. Trata-se de modelo econômico legítimo, alicerçado em contratos fortemente negociados, em que o fornecedor industrial fabrica o bem com a marca e as especificações do cliente comercial, vende-lhe em volumes pré-acordados, geralmente altos, e está proibido de vender o mesmo item a outrem. De sua vez, o cliente comercial obtém, a preço de mercado, produto com as características técnicas e comerciais desejadas, apto a diferenciá-lo de seus concorrentes, sem precisar investir em uma estrutura fabril.


A lei, no entanto, joga esses atores no rol das empresas interdependentes e lhes exige valores superiores de IPI e ICMS-ST, sem que, como na interdependência societária, haja alguém orquestrando a relação e mascarando a real ocorrência do fato gerador desses tributos.


Para o fisco, o fato de uma empresa, por exemplo, adquirir com exclusividade o produto manufaturado ou importado por outra torna-as interdependentes, ainda que a exclusividade se refira a padronagem, marca ou tipo do produto. Segundo a RFB, há exclusividade quando os bens adquiridos pelo ente comercial possuem aspectos que os diferenciem daqueles que o industrial destina a outrem. Se o item detém qualidades únicas, caracteriza-se a interdependência.


A interdependência majora as bases do IPI e do ICMS-ST. A base do IPI normalmente passa a ser o preço corrente no mercado atacadista da praça do remetente. O Estado de São Paulo eleva para 177% a margem de valor agregado, componente da base do ICMS-ST. Houvesse artificial manipulação dos preços, as majorações corrigiriam essas distorções e fariam sentido. Inexistente a artificialidade, elas são injustas.


Ao travestir de evasão tributária uma prática mercadológica legítima e penalizá-la com sobrecarga de tributos, a interdependência comercial desestimula a contratação de indústrias e empobrece a oferta ao consumidor final, pois, na prática, empurra os comerciantes para dois caminhos indesejados: fabricar sozinhos os itens que desejam oferecer ou vender apenas produtos “de prateleira”, sem propriedades que os destaquem dos já existentes no mercado. Para quem insiste em permanecer nesse modelo econômico, a regra aumenta em cascata o preço dos bens, reduz as margens dos agentes envolvidos e, em muitos casos, inviabiliza a operação. Ou renunciam a um produto diferenciado e perdem competitividade, ou veem sua margem abocanhada pela sobrecarga fiscal.


Ocorre que, ao assim espremer as empresas, a interdependência comercial viola os princípios constitucionais da livre iniciativa, da livre concorrência e da capacidade contributiva. Ao inibir uma legítima demanda de mercado, a regra afronta a livre iniciativa. Ao desestimular a compra de produtos individualizados, viola a livre concorrência. Ao devastar a margem de lucro dos agentes, desrespeita-lhes a capacidade contributiva.


A interdependência comercial não se justificaria mesmo se razões tributárias motivassem o comerciante. O sistema tributário não proíbe que o particular busque, por vias legítimas, a economia mediante o desempenho de suas atividades de forma fiscalmente menos onerosa. A busca lícita pela menor carga tributária não viola o Direito e não pode ser inibida, como, aliás, já decidiu o STF.


Não havendo artificialidade a desfazer, a interdependência comercial revela-se uma inconstitucional, injusta e abusiva intervenção na economia e merece ser contestada pelos contribuintes que afeta.



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