A MP da Liberdade Econômica, convertida em Lei em 2019, alterou um dos institutos fundamentais do direito brasileiro, presente tanto na Consolidação das Leis do Trabalho quanto no Código Civil.
Chama a atenção a alteração do art. 50 do Código Civil, que contém a base legal da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Resumindo, quando uma pessoa jurídica torna-se insolvente (tem prestações a cumprir maiores que os rendimentos que recebe), e havendo indícios de que isso decorre de uma conduta culposa, a legislação permite que sejam atingidos os bens dos sócios e administradores que compõem tal pessoa jurídica, honrando, assim, a obrigação assumida perante o credor.
Essa teoria tem como objetivo valorizar o princípio de boa-fé, evitando que a figura da pessoa jurídica seja utilizada como mero disfarce para, de forma deliberada, causar prejuízos a outros. Por isso o caput do Art. 50 continua a se concentrar no conceito definido como “abuso da personalidade jurídica”.
Desvio de finalidade e a confusão patrimonial
O conteúdo original do caput do Art. 50 foi mantido quase integralmente, e as novidades se concentram na previsão de a responsabilidade recair sobre as pessoas físicas beneficiadas pelo abuso. A nova regra ajuda a qualificar as duas formas que caracterizariam o abuso da personalidade jurídica: o desvio de finalidade e a confusão patrimonial.
A nova legislação definiu que o desvio de finalidade trata da “utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”, enquanto a confusão patrimonial trata da “ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.”
Apesar de louvável a tentativa de dar mais segurança jurídica para se evitar abusos na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, há dúvidas se as inovações da legislação alcançarão tal resultado. Até o momento, não é possível concluir se a iniciativa trouxe efetivas mudanças na aplicação dos institutos ou, então, se a alteração da lei levaria os Tribunais a aumentar o rigor na avaliação das provas que formam as hipóteses de desconsideração.
Veja-se, por exemplo, dois acórdãos. O Tribunal de Justiça de São Paulo, em casos recentes, já apresentou posições antagônicas, ou seja, ora usando os novos dispositivos legais para negar a desconsideração da personalidade jurídica, ora para justificá-la.
O acórdão lavrado no julgamento do Agravo de Instrumento nº 2062453-36.2019.8.26.0000, prolatado pela 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP em 21 de maio de 2019, fundamentou a manutenção da desconsideração da personalidade jurídica da agravante devido à “existência de sérios indícios de confusão patrimonial, revelando que o grupo econômico formado pelas empresas incluídas na demanda criou uma estrutura com objetivo de concentrar todo o seu passivo na empresa executada e nas demais, assim como beneficiar a agravante, a qual integra o grupo”. Este caso comprova a continuidade da postura histórica da jurisprudência paulista, que anteriormente à modificação legislativa, já considerava os indícios de confusão patrimonial e desvio de finalidade como suficientes à desconstituição da personalidade jurídica.
No entanto, ao julgar o Agravo de Instrumento nº 2243292-27.2017.8.26.0000 em 29 de maio de 2019, a 28ª Câmara de Direito Privado do TJSP negou a desconsideração da personalidade jurídica daquele devedor por compreender que a nova redação do artigo 50 exige que os “requisitos devem ser devidamente comprovados nos autos, onde se demonstrará o abuso da proteção patrimonial da personalidade jurídica, seja porque os sócios atuaram no sentido da produção de desvio de finalidade empresarial, seja porque utilizaram a pessoa jurídica sob confusão patrimonial (bens dos sócios e da sociedade restam indissociáveis, no todo ou em parte). Juridicamente, portanto, está-se diante de regra que demanda, em primeiro lugar, comprovação cabal de requisitos.”
Os primeiros julgados pós-MP da Liberdade Econômica, portanto, sugerem que os credores interessados em desconsiderar a personalidade jurídica de pessoas jurídicas cuidem da formação de um conjunto consistente de provas do abuso do devedor durante a condução dos negócios, para não correr o risco de esbarrar em um possível rigor dos julgadores na ponderação quanto ao cumprimento das obrigações probatórias que recaem sobre o autor.
Por Giovana Branco
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